Existe o consenso nas religiões do cristianismo de que a prática da fé ou da devoção deve ser realizada num local e num momento específicos, a saber, na “igreja” e no momento do encontro, chamado de “culto”.
O culto, no cristianismo, é o momento de celebração da liturgia, ou seja, o momento em que procedimentos específicos de adoração são oferecidos pelas lideranças religiosas, ao público que vem até ele. É algo que tem de ser feito e apresentado aos presentes, para induzi-los a sentir que realizam algo de bom para Deus e que lhes dê a sensação do dever cumprido. Estes, por sua vez, vão ao culto buscando a sensação de paz interior, por acreditar que, em lá estando, estarão satisfazendo ao desejo de Deus.
Os elementos básicos usados durante este momento de culto são a leitura bíblica, o sermão ou discurso ou pregação, a música, canto e dança, bem como os procedimentos litúrgicos carregados de simbolismos místicos, alguns considerados sacramentais, isto é, obrigatórios, e outros de bom parecer que não sejam negligenciados, como a coleta de ofertas e dízimos. Por meio destes afazeres, eles preenchem o tempo do encontro que deve ter uma duração pré-determinada.
Aqueles que vão ao culto, devem fazê-lo de boa vontade, com disposição para se deslocarem, não importa a distância, seja sob sol, sob chuva, sob frio, seja sob escuridão ou neve, e não devem deixar de levar suas ofertas e dízimos, para que Deus venha a se sentir plenamente satisfeito com a sua devoção, bem como sentirem suas consciências aliviadas, pelo dever cumprido.
Observe que nada de produtivo é feito neste encontro. Apenas um conjunto de encenações teatrais, temperadas com muitas palavras e, mais nada. Se algo de trabalho duro tiver de ser feito, deve ser feito durante outro tempo, que não o do dia do culto, como por exemplo, a construção, reforma, ou conserto do que foi danificado na igreja. O adepto, frequentador do culto, vai embora com as mãos vazias, literalmente, diferente de como quando chegou. Leva consigo apenas uma sensação de paz que logo acaba e tem de retornar para recarrega-la.
O reforço a esta prática encontra sustentabilidade no catecismo de Heidelberg[1], por volta de 1563, onde diz que todo o cristão deve frequentar assiduamente ao culto, para vivenciar as práticas religiosas.
Em tudo podemos ver uma imposição que está sendo aplicada aos adeptos, tal como era imposto pela igreja mãe, antes da reforma. Vemos que, mesmo depois da reforma, neste aspecto não houve reforma, isto é, nada mudou e continuou como dantes.
E assim, durante toda a existência do cristianismo, a prática do encontro religioso, ou culto, tem sido a atividade principal de todas as instituições religiosas, pois nele, as doutrinas são invocadas e sedimentadas nas mentes dos adeptos. Tudo se desenvolve graças à ignorância e a subserviência do povo, pois lhe falta instrução secular e o conhecimento da verdade evangélica.
Neste modelo, tudo se desenvolve segundo os interesses dos líderes que sempre tiram vantagem da ignorância popular, apresentando doutrinas muitas vezes criadas sem qualquer fundamento evangélico, ou ainda, com interpretação convenientemente distorcida, sem respaldo ou confirmação da parte de Deus, visando atender a seus propósitos.
Mas, o que há de errado neste tipo de encontro religioso?
Veja bem, o termo usado, culto, tem a conotação de cultuar, prestar culto, ou seja, prestar adoração, louvor, honra e homenagem a um ser sagrado, que no caso, é Deus.
Ainda, todos os elementos associados à pratica do culto, mencionados acima, precisam de um local e tempo específicos para acontecer.
O erro está na imposição, ou obrigação, por força de doutrina, para se reunirem em um local e no engodo das mentes do povo, levando-o a acreditar fielmente de que é necessário fazê-lo para agradar a Deus e, se não o fizerem, estarão em pecado.
É obvio que estes elementos devem estar presentes na consciência do crente, porém, continuamente e desprovidos de rito, de cerimonial, pois Deus, por ser Deus, é digno de toda a atenção e foco em cada respirar, em cada pulsar do coração, em todo lugar e tempo, no nosso culto racional.
Ele é a luz e a vida, quem nos dá o respirar, quem embala o bater do coração, quem provê o nosso estado de vigília, de consciência. Portanto, da mesma forma como ele se faz presente em todos os momentos, assim ele deve estar presente na nossa consciência.
Esta abordagem de um encontro coletivo para lembrar Dele e estar mais próximo Dele é enganosa, pois sugere que é necessário focar a mente no Deus criador, apenas no preparo para o, e no momento do culto, desobrigando a consciência do povo de manter o culto contínuo e assim, poder sentir a liberdade para focar em seus afazeres e entretenimentos terrenos.
E é exatamente isso que acontece com o povo. Vivem suas vidas segundo suas necessidades, sem focar a mente em Deus, e reservam, ou separam um dia e uma hora da semana, para uma dedicação, ou devoção a Deus. Para o Senhor, este proceder não passa de um viver hipócrita (Dt 6:5; Mc 12:33).
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Uma justificativa que tem sido institucionalizada para reforçar a prática do encontro religioso é que este promove e aperfeiçoa a comunhão dos crentes.
Nesta questão, precisamos pensar no significado do termo comunhão.
Comunhão é uma palavra muito apreciada no meio religioso, mas muito pouco entendida, de fato.
Fugindo das definições de dicionários, podemos, intuitivamente, entender de que se trata de um estado de perfeita unidade entre os elementos do grupo, ou seja, de empatia, de afinidade, de compromisso, de cumplicidade, de interação, motivado pela sincronicidade de fé, de pensamento, de sentimento e prática do verdadeiro amor e, o mais importante de tudo, de um único Deus.
A comunhão é uma interação que não está limitada a um espaço ou momento, pois ela existe e está sempre presente, mesmo que os integrantes do grupo estejam distantes fisicamente um do outro e em locais diferentes. Na comunhão não existe distância física ou espiritual.
A comunhão com o nosso Senhor Jesus, se dá no seu corpo espiritual e não, em um corpo material. A comunhão com o Pai só acontece se estivermos em comunhão com o Filho. Logo, podemos e devemos estar em comunhão com o nosso Deus, Jesus, para que possamos ser um e usufruir a comunhão com os demais irmãos, ou elementos do grupo que por sua vez, também estão em comunhão com ele.
Não existe comunhão entre nós. A comunhão só existe no Senhor e devido a nossa comunhão com ele é que experimentamos a comunhão entre nós. Não tem nada de material ou humano. Tudo acontece no espiritual e no Senhor Jesus.
Bom, não é exatamente isto que observamos acontecer na prática de cultos dos grupos religiosos.
O que é chamado de comunhão física, na verdade não passa de um encontro social, onde se reforça a fraternidade. É um encontro que pretende oferecer uma separação dos afazeres diários, e promover um dia, e um momento de descontração, de troca de conversas sobre assuntos variados, de receber uma mensagem de elevação da auto estima e até um momento de happy hour, isto é, de entretenimento e diversão. É uma festa, um pouco diferente, mas uma festa.
Há quem diga que é uma festa que oferecemos a Deus, ou uma festa que Deus nos oferece. Porém, ainda não é uma justificativa, pois a verdadeira festa é aquela que acontece no reino de Deus, quando um pecador se arrepende. Aquele propósito de festa é que devemos celebrar nesta comunhão com o Senhor (Lc 15:7,10).
Mas, não é uma boa iniciativa para comunicação das coisas de Deus?
Observemos que é Deus o autor do evangelho que nos comunica a salvação em, e por meio de seu filho Jesus. E o Senhor nos enviou o Seu Espírito para nos comunicar o que nós precisamos lembrar e vir a conhecer, enquanto no cumprimento de Sua missão. Lembremos que não há mais necessidade de que um irmão ensine a outro irmão, pois todos somos ensinados pelo Seu Espírito (Jo 6:45; 1Jo 2:27).
Com este conceito em mente, podemos entender que o Espírito é quem nos faz sentir a necessidade de visitarmos uns aos outros, quando ele, que sabe de todas as coisas, quer nos usar para atender a alguma necessidade, material ou espiritual, de nossos irmãos. Basta estarmos conectados com ele, em comunhão com ele, pois ele é o Senhor Jesus nos acompanhando em todos os nossos momentos do dia e da vida (Mt 28:20).
Quanto à pregação do Evangelho, já foi feita pelo Senhor. Não temos que acrescentar ou melhorar o que ele já pregou. O que temos de fazer é anunciar aos descrentes o que ele nos ensinou e esta não é uma exortação dirigida apenas para seus discípulos, ou para alguns poucos, mas para todos (Mt 28:20; Mc 16:15). Todos fomos por ele ordenados seus sacerdotes e esta é a nossa parte na sua missão (1Pe 2:9).
A chamada, de cada um de nós, para anunciar e levar o evangelho tem de ser feita pelo Senhor, por seu Espírito, pois ela acontece somente aos que são glorificados nele. Como o Senhor Jesus foi o único que foi glorificado, só estando nele é que seremos, também, glorificados. Logo, ninguém deve se sentir honrado ou privilegiado por ter sido escolhido para esta missão, pois a glória pertence a ele e é o seu Espírito quem chama (Hb 5:4-6).
Será que existe mais alguém que tenha sido glorificado por Deus e que tenha sido feito sumo sacerdote?
Será que existe mais alguém que padeceu e tornou-se a causa da eterna salvação?
Reflita e guarde para si a resposta. Eu já sei qual é.
Portanto, todas as justificativas que venham apresentar para reforçar esta doutrina do culto a Deus por meio de um encontro religioso, para receber a pregação da Palavra, quando tal pregação deve ser feita para os descrentes, e de realizar ritos e cerimônias devocionais, é infundada e enganosa.
Nenhum catecismo, ou discurso, ou liderança humana, pode ter qualquer autoridade para estabelecer doutrinas, nem mesmo se forem fundamentadas no evangelho, pois o Senhor do evangelho é o único aprovado e suficiente para estabelecer seus princípios. Nunca os homens.
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E qual é a verdadeira forma de cultuar a Deus?
Do exposto acima, podemos entender que, se não existe um lugar físico e um tempo material predefinido para cultuar a Deus, como podemos e devemos prestar culto a nosso Senhor?
Vamos começar com o que o próprio Senhor nos diz.
Não se trata de algum lugar para ir, mas de uma pessoa para estar. Se quisermos ter vida, ele é a videira e é nele, no seu corpo, que todos devemos estar para sermos seus discípulos (Jo 15:1-8) Ele é a igreja, o local onde devemos estar para sermos livres do pecado, abrigados debaixo, e sermos puros, por meio do seu sangue. Estar nele é estar no local de culto contínuo.
Cultua-lo, estando nele, é ouvir às suas palavras e vive-las de forma racional, oferecendo nossos corpos como um sacrifício vivo e santo. A nossa conduta diária não deve assimilar a conduta desse mundo. Devemos, no Senhor, ser transformados pela renovação do nosso entendimento, para que possamos experimentar como é a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12:1-2).
Qualquer outro local, com tamanha pretensão de ser um local de culto, é local de engano do adversário de Deus, pois está nesse mundo e o seu intento é nos desviar de estarmos no verdadeiro local de culto, no Senhor.
O maligno nos oferece uma forma de culto mais fácil, mais bonito, mais prazeroso para a nossa carne, a um custo material que suportamos e que somos capazes de atender. Afinal, ele deseja muito que nós o adoremos, como deixou explícito na tentação do Senhor.
Os crentes não devem se reunir, então?
Sem dúvida que devem, pois, reunir é um elemento do culto racional, espiritual e não, o encontro físico, ou presencial, em si.
O ato de se reunir é o princípio do congregar. E vemos que existem três congregações na bíblia. A tenda da congregação, local onde Israel se reunia; a dos justos, onde se encontram os justificados pela Lei e no Senhor; e a dos santos que é o corpo do Senhor Jesus, onde os santificados por ele se encontram.
Para o povo de Israel, o Senhor determinou estatutos diferentes, assim como um local de reunião e um local para a sua presença. Para nós, gentios, o congregar não é um evento material, mas sim, espiritual. Ele é único, singular. Não existem diversas congregações, em diversos locais.
A congregação dos justos é o evento espiritual em que os justos, os que foram justificados pela Lei e pela graça de Deus, estão presentes. A congregação dos santos é o evento onde os que foram santificados pelo e no Senhor Jesus se reúnem espiritualmente, pois ele é o Espírito de santidade. Enfim, todos estão em um único lugar espiritual, em Cristo Jesus.
Os crentes devem sentir um grande desejo de estarem juntos, porque o amor que os une e que os chama para a comunhão, os impele a se ajudarem mutuamente e se comunicarem uns com os outros, voluntariamente e espontaneamente. É este sentimento que os leva a se reunir. Não é o evento que os chama, ou exige. Eles não vão a um culto, mas sim, eles vivem em culto.
Vemos este sentimento nos irmãos da igreja original e o efeito que causou, neles e nos de fora (At 2:43-47; 4:32-35). Compare como o efeito que os encontros causam, hoje em dia. Em nada eles têm a ver um com o outro.
O que temos hoje em dia, é o alto som proveniente do local de encontro que, certamente, incomoda a vizinhança, pois a obriga a ouvir o que ela pode não querer ouvir, num horário que perturba o descanso de quem precisa levantar bem cedo para trabalhar, que promove a inquietação de pessoas doentes, acamadas e, ainda, superlota as áreas de estacionamento da vizinhança, quando não chegam a impedir o tráfego, pois muitas vezes os veículos estacionam em fila dupla para que seus ocupantes embarquem, ou desembarquem comodamente. Este culto presencial acaba sendo inconveniente para os de fora.
Quanto aos efeitos que os frequentadores destes eventos provocam para com os de fora, eu poderia dizer, com certeza, que de positivo ou espiritual, nenhum. Tudo o que se pode observar é a ostentação da maioria das pessoas que vai, desde a vestimenta que trajam, até o veículo que possuem. Observe como fica o estado de limpeza do local, após o termino do evento.
Não se percebe a diferenciação entre eles, a separação de classe social, educacional, financeira, de importância pessoal ou eclesiástica.
Os ensinamentos do Senhor, a Palavra de Deus, vêm a cada um pela ação do Espírito, estando fora ou não do local de reunião. Não são palavras preparadas, selecionadas, escolhidas para atender a um propósito específico no evento, a serem proferidas pela boca do homem. O Espírito não permite o espaço para a manifestação do homem, pois quem escuta ao homem, não escuta a Deus (Mt 6:24). Neste momento é o Espírito quem fala através das manifestações que lhe são próprias (1Co 14:26-33; 1Jo 4:1).
Vive-se a comunhão plena. Divide-se o que se tem, uns com os outros. Não se considera normal que haja necessitados entre eles, tão pouco, abastados. Reparte-se o alimento, o abrigo, a vestimenta, o transporte, pois tudo o que se tem é de todos, mesmo propriedades (At 2:42-47; 4:32). Logo, não há a ostentação por parte daqueles que muito possuem, pois não há quem muito possui.
Verdadeiramente, estamos falando de dois tipos de eventos que nada têm a ver um com o outro. O encontro religioso do homem e o culto a Deus.
Definitivamente, o consenso teológico do cristianismo está e sempre esteve muito distante da mensagem do Senhor Jesus.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
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[1] Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 38, P103 (Alemanha, 1563) – https://heidelberg-catechism.com/pdf/lords-days/O%20CATECISMO%20DE%20HEIDELBERG%20(Portuguese).pdf